31.8.07

Destróis todas as pistas que nos salvam

[Hopper - Morning sun]

Tapas os caminhos que vão dar a casa
Cobres os vidros das janelas
Recolhes os cães para a cozinha
Soltas os lobos que saltam as cancelas

Pões guardas atentos espiando no jardim
Madrastas nas histórias inventadas
Anjos do mal voando sem ter fim
Destróis todas as pistas que nos salvam

Depois secas a água e deitas fora o pão
Tiras a esperança
Rejeitas a matriz
E quando já só restam os sinais
Convocas devagar os vendavais

Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem

Sophia de Mello Breyner Andresen

30.8.07

Kill the pain . I . Homúnculo

[Bartolomé González y Serrano - São João Baptista]

can you lick my wounds please
can you make it numb
and kill the pain like cortizone
and grant me intimacy
(cantado por Massive Attack)


Puxa-se a corrente e soa a sineta ao longe. Depois a espera. Paciente. Ou não. Há aqueles que desistem. Eu não. Porque para aqui chegar. Não posso parar. Não há retorno. Enfim. Alguma coisa lá dentro. Ruge-ruge mas não é saia de senhora. Aqui não há. Creeeeeeec. Pesada. A porta. Abre-te. Devagar. Eu espero. Já esperei tanto. Já está. Lá em baixo. Quase no chão. Um homúnculo seco. Pele de cera. Franzindo o nariz. Testando o ar. Para um lado e para o outro. E guincha. Como um rato. 'Faça favor. Vem para aquilo não é'. Hesito. É tarde. Já cá estou. Abro a boca. O homúnculo funga. Não me quer resposta. Vira-me as costas e lá vai ruge-ruge. 'Venha comigo'. Passo a porta. Grossa. Como consegue aquela sombra de homem abri-la. Não sei se a fecho. Se a deixo assim. Haverá alguém que. Já está. Não vou olhar. Isto não é um filme de. Outro homúnculo. De certeza. E não vou olhar para trás. Porque eu não. Porque não há retorno. 'Então'. O homúnculo. Está à minha espera. Ao fundo do corredor. Como é que lá chegou tão. Bate-me forte forte. O coração. Não sei se. Mas agora é tarde. Já cá estou. Mão na parede de pedra fresca banhada sempre de sombra. Por isso a pele de cera. O Sol não entra aqui.

29.8.07

Epistolário XXIX

[Caravaggio - São João Baptista]

... E as janelas abertas, sempre... sempre fechadas...

Encalhei dentro de mim.
Nem me concebo já.

Mário de Sá-Carneiro, Eu-Próprio o Outro

Ρ.Α. ao seu André

Estou com pressa. Deixa-te de sonhos. E de delírios. E de loucuras. Recolhe-te em ti mesmo. Anda. Fecha a porta. Fecha os olhos. Vai-te embora. Esquece. Pára. Para quê. Ainda não percebeste que. O que fazes aí ainda. Já é tempo. Ou ainda achas que. Anda. Custa menos do que parece. Eu sei. Tu sabes. E depois nada. Ataraxia ἀταραξία. Ou preferes isto. Os dias rebolando vazios para a frente e para trás. E essa solidão atroz que te esmaga o peito. Não. Chega. Pára. E deixa-te de sonhos. Anda. Estou com pressa.

28.8.07

Purga

[Jan Davidsz de Heem - Natureza morta com livros]

Há quem tenha sabido desaparecer, entretanto.
Mário de Sá-Carneiro,
A grande sombra

E se eu ficasse em casa a ler. Tantos livros para quê. Nunca os lerei todos. Para quê. Um dia morro, e depois. Depois acabou-se. Habes somnum imaginem mortis. Deve ser como adormecer. Só que sem sonhos. Como quando não sabemos o que se passa ao nosso lado enquanto dormimos. Só que não acordamos para saber o que se passou à nossa volta. Apagou-se. Acho. Mas para quê tantos livros. Porque me dá gozo. Para quê. Se um dia morro. De que me serviu tanto gozo. Para acabar tudo numa pira. Sim. Numa pira. Não quero apodrecer num caixote. Que a terra te seja leve. Cadáver que muito gozou dos seus muitos livros. Bonito. Para quê. Para quê levantar-me. Um dia morro. Cala-te. De que me serve tanto esforço. Tento ser feliz porquê. Um dia acaba tudo. Não é que eu quisesse a eternidade. Passar por isto todos os dias num processo sem fim. Com este eu dentro de mim. Não. Não me revolto contra a morte. Só que. Para quê começar a viver, sequer. Se tudo acaba um dia. Mais valia não viver. Mais vale não viver.

A mãe das rochas

[Caspar David Friedrich - Recife]

آخر الذوا الكي
o ferro quente é o último recurso
(provérbio libanês)

Era aquela hora em que o Sol malha as cabeças com martelo furioso. Subindo suado as rochas ressequidas. E o cheiro a alga e a mar e a morte. A sua. De cada vez que o pé resvalou numa pedra solta. E o corpo estremeceu. Ai ai. E uma mão lançada mais acima e o corpo colado à pedra. É que não podia morrer enquanto não chegasse aqui. Por isso não deitou os olhos no abismo. Manteve-nos no ar. Aqui. Na rocha mãe. Mãe de todas as outras. Mãe. Desde miúdo lhe chamou assim. Aquela é a mãe das rochas. Porque dela parecem nascer todas as outras. Assim. Rolando devagarinho. Uma depois da outra. Saindo de dentro da mãe. Tremenda parede de pedra. E lá em cima. Lá em cima fica a mãe. Serena. E agora já pode deitar os olhos no abismo. Porque já chegou. À mãe das rochas. E o vento é tão forte. E os pés mal acham sítio onde pousar. Lá em baixo a praia pequenina. Não tem areia. Só pedra negra. Depois caiu. Beijando com o seu sangue uma a uma as filhas da mãe das rochas. Não tropeçou. Nem foi o vento que o soprou. Caiu.

27.8.07

A outra carta

[Leonardo da Vinci - Estudo]
I could be wholesome,
I could be loathsome,
I guess I'm a little bit shy,
Why dont you like me?
Why dont you like me without making me try?
(cantado por Mika)



Pegar num papel e escrever e dizer-lhe tudo o que me vai na cabeça no coração onde quer que esteja aquilo que me rouba os sentidos. Depois não lha mando. Porque eu não cometo duas vezes o mesmo erro. Humilhado uma vez. Não haverá segunda. Eu sei que ainda sou um miúdo. Treze anos mal feitos. Mas juro aqui e hoje. Não mais escreverei cartas de amor. A ninguém. Porque eu não vou passar outra vez por isto.

Carta de amor a não enviar mas a ser escrita na mesma
Olá. Tu sabes quem eu sou. Sim sou eu. André. Escrevi-te uma carta de amor. Lembras-te. Claro que te lembras. Viras-me a cara quando passo por ti. Nunca mais me disseste palavra. Olha. Eu sei que não sou bonito como os meus amigos. Sou gordo e tenho acne agressivo e óculos grossos e cabelo indomável. Acredita: um dia vai ser moda. O cabelo. E os óculos. Ser gordo não voltará a ser moda tão cedo. Mas um dia eu não serei tão gordo. Um dia, garanto-te, não terei acne. Um dia não serei feio. Juro. Não sei se podes esperar. Se queres. Porque sabes. Tu és tão bonita. E eu posso ser feio e gordo e ter acne agressivo e óculos grossos e cabelo indomável. Mas na verdade. Agora eu devia escrever alguma coisa que te mostrasse que apesar de tudo eu posso ser um bom namorado. Mas sabes. Agora que penso bem. Tens razão. Quem sou eu para te. Um miúdo borbulhento com três pêlos de barba. Treze anos mal feitos. Ainda se fosse bonito como os meus amigos. Tens razão em não me quereres. Quer dizer. Ainda não me disseste que não. Mas leste a minha carta olhaste para mim e riste e foste embora. É um não muito claro. Sem palavras. Mas não. E tens razão. Quem sou eu. Se fosse daqui a uns anos. Quando eu deixar de ser feio e gordo. Talvez então. Mas que importa. Tu não vais esperar. E eu também não. Sabes. A vida dá muitas voltas. Agora eu estou aqui. Gosto de ti. Quero-te. Sofro. Choro. Quero morrer. Mas ainda aqui estou. Amanhã não sei. Depois de amanhã não. Depois de amanhã já não estarei aqui. De certeza.

Adoro-te.
Ainda.
Adeus.

Domi militiaeque . 7 . A carta

[Leonardo da Vinci - Cavalo empinado]

Depois não me quiseram. Fizeram-no saber através de uma carta. Mas já não me importava. Porque nada me podia apagar os anos consumidos de medo e angústia. A espera. O dia terrível. Gritos. E a minha alma deixada lá fora. Mas agora vinha esta carta. E eu já não tinha de. Espantoso. Tanto tempo desejando isto. A minha carta de alforria. E agora. Deixei-a ficar na mão e tentei encher-me de uma alegria louca. Nada. Indiferença. Como se. Alguma amargura. E agora. Vou ter medo de quê.

26.8.07

Purga

[Ribera - São Sebastião]

Não se pode viver assim. Um dia inteiro. Interminável. Depois a noite. Curta. E se não nascesse nunca o dia. Sempre a dormir. Se pudessem os deuses parar a marcha do Sol e fazer a noite maior. Onde é que eu li isto. Já li tanta coisa. Para quê. Sabe-me mal a pasta de dentes. Voltar para a cama. Não. Para quê insistir. Já não posso voltar atrás. Agora é enfrentar o dia. Ou não. Ia ver o mar. Já que não consigo voltar para a cama. Despachar-me. Adormecia com o copo de leite na mão. Como estou agora. Estátua de granito com copo de leite na mão. Porquê granito. É frio. Não sei. E passava o dia a dormir com a cara em cima da mesa. E depois só acordava à noite. E voltava a dormir. E nunca mais acordava. Não tinha de suportar o dia.

E se eu. Não sei. Era uma hipótese. Mas. Acabava-se. Estas maleitas matinais. Estes dias sofridos. Talvez conseguisse ser feliz. Que ingenuidade. Pois se eu não acredito. Ou acredito. Não sei. Há dias assim. Tanta dúvida nenhuma certeza. Mas e se. Talves funcionasse. Talvez conseguisse. Não mais teria pela frente estes dias intermináveis. Uma nova vida. Mas que vida? Vida? Não há vida. Cala-te. Hei-de calar-te de vez. Purgar o espírito. Assim como se purgam as tripas. Mas era o espírito que eu purgava. Libertar-me de tudo. De ti. Não sei. Não consigo. É demasiado difícil. Se eu não fosse assim. Tão cobarde. Incapaz. Chega.

Pois tudo me ruiu

[Cagnacci - A morte de Cleópatra]

Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, emfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

Mário de Sá-Carneiro

Iguais

[Cranach - Lucrécia]

Dois dias mais tarde, suicidava-se com uma bala no coração...

... Foi depois que eu soube que a outros amigos ele anunciara também o seu suicídio - sob o maior segredo - juntando, em confidência, as razões que o forçavam a um tal desespero: mas a cada um de nós contara uma história diversa...
Mário de Sá-Carneiro, A grande sombra

Os dias rebolam iguais e parecem a cada dia que passa cada vez mais iguais. Sempre iguais. Às vezes há um lampejo uma faísca qualquer coisa que torna um dia diferente do anterior e do seguinte. Mas depois tudo volta ao sempre igual. Porque o lampejo a faísca o que seja não duram. Há sempre alguém que lhe põe o dedo molhado em cima. Recolho as cinzas e faço-me de novo ao caminho. E assim me rebolam os dias iguais. Sempre iguais.

Pib and Pog - The Kitchen

25.8.07

Epistolário XXVIII

[Andrea del Sarto - Retrato de jovem]

Don’t say

we have come now to the end.

White shores are calling.

You and I will meet again.

And you’ll be here in my arms,

just sleeping.

(cantado por Annie Lennox)


Ρ.Α. ao seu André

Não se volta a sítio de onde nunca se saiu. Tu o dizes. Não sei se saiste. Se não. Se quando desapareceste da minha vida eu fiquei na tua mente. Se aquelas memórias que aqui desfias alguma vez te abandonaram. Ou não. Não sei. Se calhar não. Se calhar quando pensava em ti e queria que estivesses ao meu lado. Se calhar também tu me tinhas na mente. Se calhar apenas não podias lutar contra ti mesmo. Contra os teus medos. Não sei. Mas eu senti a tua falta. Não sei se isto é não sair. Talvez seja. Quem sou eu para. Quem és tu.

Não sou eu. Não é o meu fantasma. És tu. Though they keep giving you the it's not you it's me routine. Não funcionas. Não és. Chega. Aprendeste a tua lição. Porque saíste tu da tua clausura de tantos anos? Porque deixaste o sossego da tua solidão? Inebriado com rejuvenescimento surpreendente e espectacular. Eu sei. Mas tu lembras-te de como eras e às vezes pareces ter voltado a ser. De que te valeu então. De que te vale agora. Pára. Desiste.

Não há vazio maior do que aquele onde estou. Tu não sabes o que é o vazio. Tu estás aí. Respiras. Corres. Choras. Até quando. E às vezes eu penso se. Porque tu não vais conseguir. Já experimentaste tudo. Não dá. Deixa de ser tolo. Desiste.

Também eu gostava de te ter perto de mim. Embora isso seja impossível. Porque eu só existo na tua memória. Tu sabes. Ou não. E se. Só há uma maneira de o saberes. Tu sabes.

Domi militiaeque . 6 . Escaravelhos

[Leonardo da Vinci - Cabeça de guerreiro]

آمن بحجر تبرا

tem fé numa pedra e serás curado
(provérbio libanês)


Adiar até ao fim. Até ao dia em que.

Porque eu não vou aguentar. A sério. Eu morro. Não me mato. Mas morro. Sozinho. No meio deles. Um dia vão à minha procura. E eu estou no meio do mato. Com escaravelhos na boca. Portanto os senhores têm de me dar por inapto. Devia ser inepto. Os senhores não sabem latim. Não precisam. Mas não lhes faria mal nenhum. Porque se não o fizerem. Para o resto da vossa vida. A imagem de mim de cara posta no chão. E escaravelhos a sairem-me da boca. E do nariz.

Exército seja. Demora menos não é. E agora como vai ser. Não interessa. Tenho um ano. Ou mais. Agora é viver. Nunc uiuendumst. Já me esquecia. Os senhores não sabem latim. Esquecer o que há-de vir. Porque daqui a um ano. Ou mais. Estarei de barriga para baixo. Boca aberta. E escaravelhos. Muitos escaravelhos.

24.8.07

And in dreams we will meet again

[Caspar David Friedrich - Paisagem montanhosa]

«When the cold of winter comes
starless night will cover day,
in the veiling of the sun
we will walk in bitter rain.

But in dreams
I can hear your name,
and in dreams
we will meet again.

When the seas and mountains fall,
and we come to end of days,
in the dark I hear a call
calling me there,
I will go there,
and back again.»

(cantado por Edward Ross)

Domi militiaeque . 5 . Purga

[Giorgione - Soldado e moço de cavalariças]

وَلَوْلَا أَن يَكُونَ النَّاسُ أُمَّةً وَاحِدَةً لَجَعَلْنَا لِمَن يَكْفُرُ بِالرَّحْمَنِ لِبُيُوتِهِمْ سُقُفًا مِّن فَضَّةٍ وَمَعَارِجَ عَلَيْهَا يَظْهَرُونَ وَلِبُيُوتِهِمْ أَبْوَابًا وَسُرُرًا عَلَيْهَا يَتَّكِؤُونَ وَزُخْرُفًا وَإِن كُلُّ ذَلِكَ لَمَّا مَتَاعُ الْحَيَاةِ الدُّنْيَا وَالْآخِرَةُ عِندَ رَبِّكَ لِلْمُتَّقِينَ
Alcorão 43:33-35 (*)

Não sinto as pernas ainda que esteja em cima delas e me dirija ao balneário. Se isto tudo acabasse já já. Já não quero saber. Fico não fico. Depressa caralho não há tempo para banhos. Não há tempo para banhos. Tanto faz. Porque não é o corpo que precisa de purga. Voltar para trás. Vestir. Sem banho. Porque eles mandaram. Se dependesse de mim. Não saía do duche. Ficava ali a vida toda. Até o corpo se me arrepanhar. Engelhado como a minha alma. E me crescerem cogumelos nos olhos. Mas quem manda aqui são eles. Os meus senhores. Que me ordenam não tome banho. Porque não há tempo. Eu obedeço. Andando sobre pernas que não sinto. E está tanto frio. Se tudo isto acabasse.

Sentado. Enquanto espero. Hão-de chamar-me. Não sei para quê. O banco é de pedra. E as minhas costas roçam a parede gelada. De pedra. Já não as sinto. Nem costas. Nem pernas. Fome. O meu número. Porque aqui eu não tenho nome. Frio. Um número. Queria comer. Que isto tudo acabasse. Mas primeiro estes senhores querem ver e tocar mais alguns bocados do meu corpo. Com coisas de ferro gelado. Para ver se. Não sei. Não quero saber. Já não sinto. Onde está o meu corpo. Se me pudesse livrar dele. Deixá-lo aqui neste banco de pedra. Vivo. Ou morto. Tanto faz. Disponham. Do meu corpo. Como quiserem. Mas não me toquem a alma. Essa vou eu purgá-la. Quando. Um dia.

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(*) Se os homens não tivessem formado uma só comunidade (de descrentes), teríamos certamente provido as casas dos que não crêem no Todo Misericordioso de tectos de prata com escadas para subirem, e para as suas casas portas (de prata) e sofás (de prata) onde se reclinariam, bem como ornamentos. E tudo isto não seria mais do que o gozo temporário da vida cá de baixo, enquanto o Além, junto do teu Senhor, é para os pios.

Hotlead



«Hotlead is an animted film noir short about a couple of hotel patrons who are hunted by a band of killers disguised as nurses. A shoot out erupts and things go from bad to worse.»

23.8.07

Carta de desamor

[Pieter Brueghel o Jovem - Provérbios (pormenor)]

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Álvaro de Campos


Abri a minha cabeça e tirei lá de dentro tudo o que sentia por ti. Agora está tudo nas tuas mãos. Na minha cabeça não ficou nada. Vês. Espreita. Não tenhas medo. Podes debruçar-te sobre a minha cabeça aberta. Nenhuma sensação te espirrará os olhos. Não te quero os olhos irritados com sensações minhas. Nem te morderá sentimento nenhum o nariz. Mas não deixaria de ser divertido. Ver-te ir embora com um sentimento agarrado ao nariz. O problema é que quando fecho a cabeça. Mesmo se a atar assim com tanta força. E puser cola daquela forte forte superforte. Volta tudo lá para dentro. Tudo o que eu sentia por ti. És tu malandro que me voltas a pôr tudo dentro da cabeça. Ouve. Peço-te. Guarda-me tudo o que eu sentia por ti. Fecha tudo dentro de um baú com três cadeados. Depois lança-o ao mar. Porque se tu não o queres. Eu também não o quero.

Aquele é que me saberia ser

[Dürer - Auto-retrato]

«Paris, 1909 - Janeiro, 5.
Hoje encontrei-o pela primeira vez.
Foi no Café. De súbito, vi-o na minha frente... O Café estava cheio. Por isso se veio sentar na minha mesa.
Mas eu não o vi sentar-se. Quando o vi, já ele estava diante de mim. Ninguém nos apresentara, e já conversávamos os dois...
Como é belo!
E o ar de triunfo que ilumina o seu rosto esguio, macerado?... Tombam-lhe os cabelos longos aos anéis. É ruivamente loiro. Tive vontade de o morder na boca...
Aquele, sim, aquele é que me saberia ser.»
Mário de Sá-Carneiro, Eu-Próprio o Outro

22.8.07

A noite

[Goya - Un perro]

آخر الليل بتسمع العياط
ao fim da noite gritos ouvirás*
(provérbio libanês)

Não não não apagues a luz. Nem a televisão. Continua aí. E eu. Sozinho. Na cama. Fala. Para ninguém. Só para te ouvir a voz. Porque eu preciso. Não sei. Do barulho. Saber que há alguém. Não. Podes apagar a luz. Mas não apagues a televisão. Deixa-me coisa viva. Deixa-me um ruído. Ou então apaga. Mas continua aí. Fala. Não. Até podes não falar. Passeia pela sala. Arrasta uma cadeira. Ajeita-te no sofá. Mas não te vás deitar. Faz barulho. Fica aí. Não me deixes sozinho com este zumbido medonho na cabeça. Porque eu preciso. Tanto. Preciso de saber. Que não estou sozinho. Que a noite vai chegar ao fim. Que eu vou acordar. Ou não.

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* 'âHer l-leil betesmaº l-ºeyâT

Pib and Pog - Peter's Room

Angst



«From the day André was born, he got harassed by the wind, which resulted in a fear for it. He is forced to confront his fears, the moment his dog gets in trouble. A wonderful animated short.
Director: Emiel Penders»

Penduraram-me os nervos numa escápula de ferro

[Goya - Quién lo pudo pensar]

«Meu Deus... meu Deus... Como hei-de suportar esta luz sem fim - inevitável e obcecante...
Ultrapassei-me em tédio. Tudo se esvaziou à minha volta...
Penduraram-me os nervos numa escápula de ferro; ataram-mos numa réstia seca...
Tenho medo de mim, de triste que estou...
Passeio nas ruas, solitário - e o meu olhar, o meu próprio olhar, me fustiga...
Em vão busco ainda acompanhar-me de fantasmas...
Tudo vive esta vida ao meu redor...
Se ao menos existissem outras... Sei lá, vidas instáveis, vidas-aromas - organismos fluidos que se pudessem condensar, solidificar, e de novo evaporar...»

Mário de Sá-Carneiro, A grande sombra, VIII

21.8.07

Domi militiaeque . 4 . Frio

[Bloemaert - Soldado e jovem porta-estandarte]

Dói-me a cabeça. E os braços. Não sei porquê. A cabeça é normal. Absinto. Pimenta. Agora os braços. Não grites. Toca a levantar caralho. Não sei se consigo. Se me deixo ficar aqui. E não me levanto mais desta cama. Porque se eu me levantar. Está tanto frio. Estou tão pesado. Não mais me levantar. Ficar aqui para sempre. Agarrado a estes lençóis desgastados. Tapar a cabeça. Fingir que não estou cá. Que sou um monte de cobertores enrolados. De merda. Porque se eu me. Não vai estar ninguém à minha espera.

Espuma de oiro

[Ostade - Taberna de aldeia]

linda cerveja
vem nesta bandeja
bela caneca que os meus lábios beija
espuma de oiro
requinte, plena sedução
festival da total satisfação
Baviera, tradição

(Cantado por Mler Ife Dada)

Epistolário XXVII

[Memling - Vir dolorum]
I am stretched on your grave
And I'll lie here forever
If your hands were in mine
I'd be sure they would not sever
My apple tree, my brightness
It's time we were together
For I smell of the earth
And am worn by the weather


(anónimo irlandês do século XVII traduzido por Philip King)

André ao seu Ρ.Α.

Volto sempre a ti. Ou talvez não. Porque eu nunca te deixo. E se nunca te deixo. Então não volto. Porque para voltar. E eu não te deixo. Nunca. Nem nos momentos de maior felicidade. Quando seria fácil arrumar-te num canto esquecido. Mas não. A tua memória não me abandona. E tu sabes que não é fácil. Para os outros. Porque o que para mim é memória. Doce. Sempre presente. Para eles é fantasma incómodo. Quando começo as minhas frases por o Ρ. um dia. Ou o Ρ. uma vez. Ou o Ρ. dizia. Tantas. Demasiadas vezes. E eu não sei se.

Perguntas porque escrevo cartas falsas em nome de um morto que nunca em vida me escreveu uma linha sequer. Eu escrevo memórias. Tu és uma. Das mais queridas. E nos momentos mais negros aninho-me nos braços que amei. Onde está o calor que não encontro cá fora. E à medida que se vai estreitando o meu mundo. E caindo uma a uma as âncoras que me sustêm. A saudade. E a tristeza. E o vazio. Porque é isso que me mata. Olhar em volta e não ver. Então volto sempre a ti. Mesmo não sendo um retorno. Porque na verdade nunca te deixei. A ti vejo-te sempre. Em todo o lado.

E se eu acreditasse que. Seria tão mais fácil. Porque teria aquela esperança. Eu sei. Vã. De um dia voltar a ver-te. Dar-te o beijo que nunca demos. Mas eu não acredito. E nunca mais nos veremos. Nem aqui. Nem em lado nenhum. Não te terei de novo nos braços. E o beijo que nunca demos. Queria poder dizer-te até breve.

Fazes-me tanta falta.

P.S.
Anteontem passei por ti. Era de noite. Estava com ele. Por quem me chora o coração.
Não pararam os meus pés. Parei eu. Deixei de ouvir de sentir de viver. Um momento. Deitei-te os olhos e disse-te olá. Não sei se me viste.

20.8.07

De Reuolutionibus Orbium Caelestium

Principio aduertendum nobis est globosum esse mundum, siue quod ista forma perfectissima sit omnium, nulla indigens compagine, tota integra; siue quod ipsa capacissima sit figurarum, quae comprehensurum, et conseruaturum maxime decet; siue etiam quod absolutissimae quaecumque mundi partes, Solem dico, Lunam, et stellas, tali forma conspiciantur; siue quod hac uniuersa appetant terminari. Quod in aquae guttis ceterisque liquidis corporibus apparet, dum per se terminari cupiant. Quo minus talem formam caelestibus corporibus attributam quisquam dubitauerit.
Copérnico, De Reuolutionibus Orbium Caelestium Libri VI, I, 1 (1543)

The last glass of water

[Dürer - Paixão]

Did she take her time, contemplatively holding the pill bottle in her two hands before emptying the contents into her palm and slowly swallowing them with her last glass of water, with the last taste of water ever?
Philip Roth, Everyman

Não saem. Secaram. Já não há sal. Nem dor. Nem cor. Só o vazio. Outra vez. Tremendo. E agora eu não sei se.

Harto

[Van Gogh - Caminho com choupos]

Harto de tanta porfía
sostengo bevir tan fuerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte

En tus manos la mi vida
encomiendo condenado.
O piedad mereçida!
Por qué m'as desanparado?

Fin hará la profecía
dada por mi mala suerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte

(anónimo espanhol, s. XV/XVI)

19.8.07

Ça me fascine

[Iluminura francesa do século XIV]

«Comme je n'y connais pas vraiment grand chose alors ça me fascine parce que je ne sais pas grand chose.»
(Cantado por Mler Ife Dada)

16.8.07

Aquilo que não se pode contar || Index rerum

[Bosch - Nauis stultifera]

1 . O buraco
2 . O medo
3 . O grito
4 . Minhocas oculares
5 . Memórias
6 . A coita
7 . Frio
8 . Vermelho e laranja
9 . O bafo
10 . O sótão
11 .
12 . O cheiro
13 . O morto
14 . A escada
15 . Pregado
16 . Êxodo
17 . As trevas
18 . Aquilo
19 . E se
20 . A mão
21 . Nunc dimittis
22 . Explicit

Aquilo que não se pode contar . 22 . Explicit

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central)]

E vi um jardim imenso, e no meio um homem sentado, de cabelos brancos, vestido à maneira dos pastores, grande, mungindo ovelhas. E à volta, em pé, muitos milhares vestidos de branco. E ergueu a cabeça e olhou-me e disse-me: "Bem-vinda, filha". E chamou-me e do queijo que mungia deu-me um bocadinho. E eu aceitei-o, com as mãos juntas, e comi. E todos os que estavam à volta disseram: "Amen". E ao som de uma voz acordei, mastigando ainda qualquer coisa doce. E contei logo tudo ao meu irmão. E percebemos que sofreríamos paixão, e começámos a não ter já nenhuma esperança neste mundo.

Paixão de Perpétua e Felicidade, IV, 8-10 (séc. III)

Depois abri os olhos e vi a mãe inclinada sobre mim. "O que foi, querido". Faltava-me o ar. Não do pó. O pó nunca me incomodou. Era do meu choro convulsivo. E eu não conseguia falar. Mudo de terror. "Já passou já passou". Não passou. Não passará. Nunca. Mas eu acreditei. Porque eu queria acreditar que. Olhei para cima e vi a moldura. Fechada. Cheia de pó. Como se sempre tivesse estado assim. Como se alguém. Ou alguma coisa. "Foi um sonho mau". E eu olhei para ela e suspirei de alívio. A voz e os olhos de uma mãe. Limpei a cara às mangas do pijama e deitei-me outra vez enrolado no cobertor. Mãe fica aqui ao pé de mim. Mãe conta-me uma história. Levei a mão ao peito e senti tum tum tum tum. E um ardor nas costas. Nada. Mãe dorme aqui comigo. Porque eu tenho medo.

Depois abri os olhos e a mãe já não estava ali. Mas eu ouvia-a na cozinha. Os tachos toc toc toc. Agora eram os tachos. Não era aquilo. Porque agora eu achava que aquilo nunca tinha existido. Mãe. "O que foi querido". Nada. E senti-me mergulhado num calor tão bom. O Sol do fim da tarde. Através da cortina listada. Laranja. Ou vermelho. Porque eu achava que tinha sido um sonho mau e feio. Porque eu estava vivo. Deitado na cama de onde nunca tinha saído. E a moldura lá em cima. Fechada. Empoeirada. Mas ela antes nunca. Nada. Chega. E dormi. Tanto.

Depois abri os olhos e era noite. Tentei levantar-me. Colado à cama. As costas. Dor dor dor. Em cima. Na omoplata. Na esquerda. Com cuidado descolei as costas da cama. Levei a mão devagar. Devagarinho. Sobre o ombro esquerdo. Depois fui descendo os dedos. Percorrendo a omoplata. Em círculos. Até encontrar. Eu já sabia. Porque já tinha sentido a cama húmida. E já tinha passado a mão. E era viscoso. Mas se tinha sido um sonho. O sangue dos sonhos não é a sério. Mas. E agora isto. Este buraco. Na omoplata. Na esquerda. Um prego dobrado. E lancei os olhos ao tecto. E percebi porque é que no meu sonho não tinha conseguido entrar à primeira. Preso. Mas se tinha sido um sonho. E depois foi como se me arrancassem o estômago. E abri a boca para gritar mãe. Mas não saiu nada.

Uns pontos brilhantes no ar. Ali. Do outro lado da cortina que servia de porta. E duas bolas grandes grandes como faróis. Empurrando devagarinho a cortina. E eu abri a boca e não saiu grito nenhum.

E agora eu já não abro a boca. Quando vejo os pontos brilhantes aos pés da minha cama. Porque eu já sei. Não vai sair nada. Porque emudeço de terror. Não por causa daquilo. Por aquilo que aquilo me lembra. A minha morte. E de como eu via tudo. E de como a minha morte não era um fim. E de como vai ser. E de como vou ficar agarrado à visão do meu corpo. E de como não vou ter paz. E de como não vale a pena viver. Mas morrer também não. E de como.

Explicit.
Vellem.

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et uidi spatium immensum horti et in medio sedentem hominem canum in habitu pastoris grandem oues mulgentem et circumstantes candidati milia multa et leuauit caput et aspexit me et dixit mihi bene uenisti tegnon et clamauit me et de caseo quod mulgebat dedit mihi quasi buccellam et ego accepi iunctis manibus et manducaui et uniuersi circumstantes dixerunt amen et ad sonum uocis experrecta sum conmanducans adhuc dulce nescio quid et retuli statim fratri meo et intelleximus passionem esse futuram et coepimus nullam iam spem in saeculo habere

Solis putatis esse mentulas uobis


XXXVII

Lasciva taberna e vós, companheiros,
nona coluna dos irmãos do píleo,
pensais que só vós tendes piça,
que só a vós é permitido foder
tudo o que é miúda e julgar bodes os outros?
Ou, pois vos sentais, sem graça, em fila,
cem ou duzentos, não me julgais capaz
de foder de uma vez a boca aos duzentos?
E pensai nisto: é que vos rabiscarei
caralhos na frente de toda a taberna!
Pois a minha miúda, que do colo me fugiu,
amada tanto como nenhuma outra será amada,
por quem grandes batalhas lutei,
aí se sentou. A ela vós todos,
nobres e ricos, e sem dúvida, o que é indigno,
todos tacanhos e fodilhões de beco, amais.
Mais que todos tu, um dos cabeludos,
filho da coelhosa Celtibéria,
Inácio, que uma grossa barba torna nobre,
e os dentes esfregados com urina ibera.


salax taberna uosque contubernales
a pilleatis nona fratribus pila
solis putatis esse mentulas uobis
solis licere quidquid est puellarum,
confutuere et putare ceteros hircos
an continenter quod sedetis insulsi
centum an ducenti non putatis ausurum
me una ducentos irrumare sessores
atqui putate namque totius uobis
frontem tabernae sopionibus scribam
puella nam mi quae meo sinu fugit
amata tantum quantum amabitur nulla
pro qua mihi sunt magna bella pugnata
consedit istic hanc boni beatique
omnes amatis et quidem quod indignum est
omnes pusilli et semitarii moechi
tu praeter omnes une de capillatis
cuniculosae Celtiberiae fili
Egnati opaca quem bonum facit barba
et dens Hibera defricatus urina

Aquilo que não se pode contar . 21 . Nunc dimittis


[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel central)]

νῦν ἀπολύεις τὸν δοῦλόν σου δέσποτα κατὰ τὸ ῥῆμά σου ἐν εἰρήνῃ
nunc dimittis seruum tuum domine secundum uerbum tuum in pace
الآنَ تُطْلِقُ عَبْدَكَ يَا سَيِّدُ حَسَبَ قَوْلِكَ بِسَلاَم
Lc 2:29

Eu morri ali. Enquanto a mão gelada me entrava na alma e me sugava o corpo. Porque até ali só o meu corpo estava morto. A alma vivia. Porque eu tinha medo e força e tristeza e dor e alegria e espanto e. E agora não tinha nada. Só medo. Tanto.

Toc toc toc. Dois olhos. Duas bolas grandes grandes como faróis saltando em cima do meu peito. E uma sombra espessa. E uns pontos brilhantes. Que a princípio pensei serem reflexos de luz no pó. Ainda antes de o ver. Mas não. O pó não brilha. Era aquilo. E eu não sei se. Porque nada me garante que. Aquela mão gelada. Que eu não via. Mas sentia. De quem era. Daquilo. Ou não. E se. Mas veio com ele. Com aquilo. E eu não sei se. Eu só queria que isto acabasse. De vez.

Depois os olhos afastaram-se devagarinho. E os pontos brilhantes apagaram-se. Enquanto o meu coração retomava o seu tum tum tum tum eu deixava de me ver de fora. Agora estava dentro de mim outra vez. Como agora. E o meu coração tum tum tum tum. E o meu peito subia e descia e os meus dedos ganharam cor. E olhei pela moldura e já não estava em cima da cama o meu corpo morto. E a mão gelada. Ficou cá dentro de mim.

Mas eu. Eu morri ali. E agora eu estou morto. Porque isto não é viver. Porque eu sei que. Porque aquilo me roubou tudo. E só deixou medo e terror e paranóia e loucura. E medo. E terror. E paranóia. E loucura. Mas isso não foi o pior. O pior foi que eu vi senti o que é estar morto. E eu queria que morrer fosse acabar tudo. Fechar os olhos e adeus. Mas não. Morrer é estar vivo. Com a certeza de não morrer mais. E a ver-me o corpo morto. Porque eu vi-me ali deitado na cama. A pele de cera e a boca torta e os olhos baços abertos. E se o meu coração não tivesse voltado tum tum tum tum e o meu peito a subir e a descer. O que teria eu visto. O horror e as lágrimas na cara da minha mãe. E o caixão e o funeral. E eu dentro do caixão a ver-me de cima. E depois as carnes desfeitas e os líquidos e os cheiros. E depois ficar assim parado a olhar até.

Até quando. Porque não é daquilo que eu tenho medo.

15.8.07

Epistolário XXVI

[Dürer - São Jerónimo]

André ao seu Ρ.Α.

Tivesse eu. Eu fiquei calado. Não abri a minha boca. Porque dela não me saem palavras. Subiram-me à boca. Uma duas três tantas vezes. E eu apertei os lábios. Contive-as e olhei para o lado. Contigo era assim. E agora também. Tenho tanto medo. De quê. De nada.

Trinta e tantos. Já é tempo. Já chega.

Até já.

Epistolário XXV

[Fra Angelico - Vista de uma cela]

Ρ.Α. ao seu André.

De que te valeu. Tivesses tu ficado calado. Porque isto. Este medo esta vergonha que te tolda a mente. Ainda não percebeste. Não nasceste para isto. Tu. Só tu. Trinta e tantos anos. Já chega.

Olho para trás e. É tarde.

Acorda.

الحمى

P3300063

«Alfama de cacos pintados de tintas e trocas e ventos no rio de pontos picantes e pontas de faca com laca e alpaca de Alfama com alma de alfafa e gente de fama que cai na galhofa do pátio da esquina da feira da ladra de cacos picantes e contas correntes de tretas e pintas de gente com laca nas pontas da fama e ventos de faca que cortam Alfama em portas pintadas com a fama do fado.»

(Cantado por Mler Ife Dada)

Aquilo que não se pode contar . 20 . A mão

[Bosch - Adoração dos Magos (pormenor do painel central)]

E porque sabia que tinha sido condenada às feras, admirava-me de que não me lançassem as feras. E surgiu diante de mim um egípcio de aspecto hediondo, com os seus ajudantes, para lutar comigo. Vieram também até mim uns jovens formosos, ajudantes e meus apoiantes. E despiram-me e tornei-me homem. E começaram os meus ajudantes a esfregar-me com azeite, como é costume na luta. E vejo defronte o egípcio rolando no pó.

Paixão de Perpétua e Felicidade, X, 5-7 (séc. III)

Os meus olhos fugiram para o fundo do sótão. Ali onde o pó era mais denso e a luz morre antes de pousar. E o toc toc e o cheiro acre espesso. Cheiro a cor de laranja. Era aquilo. Estava ali. Primeiro pensei que fosse um engano de pó e de sombra. Uma mancha difusa escura mais escura do que do resto. Do que as nuvens de pó. Portanto não era uma nuvem de pó. Não era um engano. Então o que era aquilo. Dois olhos. Não sei se eram olhos. Duas bolas escuras e baças fixadas em mim. Como é que eu podia saber. Não sei. Que estavam fixadas em mim. Mas estavam. Assim do tamanho dos faróis de um carro. Rolaram no ar até chegarem a mim. E eu tive tanto medo. Porque eu senti. Eu estava morto. Mas senti. E aquele calor medonho espinha acima. Que estar morto não era o pior que me podia acontecer.

Era uma sombra escura espessa do meu tamanho. Pequenina. Com duas bolas enormes postas em mim no lugar dos olhos. E eu não podia estender a mão e tocar-lhe. Porque o meu corpo morto já não me obedecia. Por fim sentia-me morto a sério. Que até ali eu era um morto vivo. Sentia o meu corpo. Levava a mão ao peito e não havia tum tum tum tum. Mas eu mandava na minha mão. Estava morto mas estava vivo. Não respirava. Mas o resto estava lá. Pensava tinha medo frio angústia coragem calor. Só não tinha dor. Embora então ainda não o soubesse. Depois. Agora eu estava de facto morto. Porque o corpo já não era meu. E eu olhava-me fora de mim. Como contam aqueles textos medievais. Baronto. Túndalo. Tantos outros. Homens quase mortos levados a ver o Além. E depois voltavam aos seus corpos para contar as penas do Inferno e as delícias do Paraíso. Ou ao contrário.

Depois as bolas caíram no chão e fizeram toc toc toc. E o meu corpo tombou e as bolas em cima dele. E eu senti um frio medonho na alma. Mão gelada dentro de mim.

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et quia sciebam me ad bestias damnatam esse mirabar quod non mitterentur mihi bestiae et exiuit quidam contra me aegyptius foedus specie cum adiutoribus suis pugnaturus mecum ueniunt et ad me adolescentes decori adiutores et fautores mei et expoliata sum et facta sum masculus et coeperunt me fauisores mei oleo defricare quomodo solent in agone et illum contra aegyptium uideo in afa uolutantem

14.8.07

Los Brownies

[Pieter Bruegel o Velho - Jogos de crianças (pormenor)]


«Son hombrecitos serviciales de color pardo, del cual han tomado su nombre. Suelen visitar las granjas de Escocia y durante el sueño de la familia colaboran en las tareas domésticas. Uno de los cuentos de Grimm refiere un hecho análogo.


El ilustre escritor Robert Louis Stevenson afirmó que había adiestrado a sus Brownies en el oficio literario. Cuando soñaba, éstos le sugerían temas fantásticos; por ejemplo, la extraña transformación del doctor Jekyll en el diabólico señor Hyde, y aquel episodio de Olalla en el cual un joven, de una antigua casa española, muerde la mano de su hermano.»


Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero,
El Libro de los seres imaginarios.
Ed. Alianza Editorial

Aquilo que não se pode contar . 19 . E se

[Bosch - Julgamento Final (fragmento do Inferno)]
κύριε ἐλέησόν με
kýrie eléêson me
Salmos (versão da Septuaginta) 40:5

E eu sei o que é isto que se me enterra no peito e me arranca a força e me mata e me morre a coragem de. Eu vejo eu sinto eu sei. E são cinco da manhã e eu espero a luz. Deito os olhos pela porta. Calor tremendo. Espinha acima. E se.

Aquilo que não se pode contar . 18 . Aquilo

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel direito)]

γῆ εἶ καὶ εἰς γῆν ἀπελεύσῃ
terra és e à terra voltarás
gê eî kaì eis gên apeléusêi
Génesis (versão da Septuaginta) 3:19

Um sótão esquecido tem frestas nas telhas por onde entram línguas de luz de cobre que fazem dançar a poeira. E o chão range se lhe pomos um pé em cima e depois o outro. E há cómodas velhas e arcas onde ninguém toca ou se calhar nunca ninguém tocou. E teias de aranha grandes do tamanho de um homem: cortinas cinzentas de pó enfeitadas aqui e ali por cachos de moscas mortas secas sugadas comidas por dentro. E há bolor e musgo e umbrófilas porque quando chove a água escorre pelas telhas rachadas. E um cheiro espesso que se entranha na pele. E a madeira estala e ronca gemendo as entranhas roídas.

Mas aquilo não era um sótão esquecido. Fechei os olhos e esperei. Eu sabia que tinha de esperar. O quê. Não sabia. Agora sei. Agora.

Talvez não tenha sido mais do que um momento. Percebi a claridade invadir-me as pálpebras. Abri os olhos e afinal não havia claridade. Uma penumbra de cobre. Assim como a luz moribunda que passa a minha cortina listada. Laranja. E vermelha. E já não estava tudo turvo. Olhos habituados àquela penumbra. Não havia frestas nas telhas. Nem línguas de luz nem cómodas nem arcas intactas. Nem teias nem aranhas. Nem bolor nem musgo. Nem moscas secas sugadas. Vazio. Só pó. E o pó não assentava.

Olhei para todos os lados. Um sótão imenso e o pó. Alto no meio. Tanto que não chegava às telhas mais altas. Mas eu era tão pequenino. E depois descia dos lados. Até tocar no chão de madeira lisa. Limpa. Sem pó. Agora notava. Tanto pó no ar. Mas no chão. Como a moldura vista de baixo. Madeira lisa limpa polida. Como se alguém. Ou alguma coisa. O pó dançava eterno no ar. Sem pousar.

E depois ouvi o toc toc. Ao fundo. Mas como. Se o ouvia todos os dias mesmo em cima de mim. E agora estava no ponto oposto. Mesmo lá ao fundo. Onde a luz morta já pouco alcançava. Um calor tremendo espinha acima. Mas medo não. Como se. Não. Lancei os olhos ao fundo do sótão. De onde toc toc. E depois vi.

Aquilo.

13.8.07

Cinaede Thalle mollior cuniculi capillo



XXV

Talo, paneleiro, mais fofinho que o pêlo do coelho,
ou o fígado do ganso, ou o lobo da orelha,
ou a murcha pila de um velho e uma teia de aranha:
e tu mesmo, Talo, mais ladrão que uma violenta tempestade,
quando a deusa revela os mulherengos bocejantes,
devolve-me o pálio que me roubaste,
e o lenço de Sétabe e as tabuinhas da Bitínia,
meu estúpido, que descaradamente exibes como herdados.
Descola-os já das tuas unhas e devolve-os,
não te vão chicotes ardentes o tenro rabinho
e as mãos delicadas indignamente rabiscar,
e agitares-te tu de modo insólito, qual pequena nau
apanhada em mar alto por vento furioso.



cinaede Thalle mollior cuniculi capillo
uel anseris medullula uel imula auricilla
uel pene languido senis situque araneoso
idemque Thalle turbida rapacior procella
cum diua mulierarios ostendit oscitantes
remitte pallium mihi meum quod inuolasti
sudariumque saetabum catagraphosque thynos
inepte quae palam soles habere tanquam auita
quae nunc tuis ab unguibus reglutina et remitte
ne laneum latusculum manusque mollicellas
inusta turpiter tibi flagella conscribillent
et insolenter aestues uelut minuta magno
deprensa nauis in mari uesaniente uento

11.8.07

Estrela

[Tropîme Bigot - Rapaz com morcego]

EMILY

(giggles) Pardon my enthusiasm!
VICTOR
I like your enthusiasm...
Danny Elfman
(Corpse Bride de Tim Burton)

a R2.
_toma lá mais uma imperial
_eu não gosto de cerveja
_cala-te e bebe

E depois eu inclinava-me para a frente no banco alto e via-te derramar devagar devagarinho a cerveja no meu copo. Sem espuma. E depois eu levava o copo à boca e olhava para ti e tu olhavas para mim e não dizias nada. Os teus lábios apertados numa cara sem riso. E depois eu baixava os olhos e brincava com o copo na mão enquanto fazia tempo. Porque não fica bem beber sofregamente. Um gole pequeno. Saborear. E depois olhar para nada à espera de ser tempo de outro gole.

_queres outra
_quero
_afinal gostas
_um bocadinho
_és assim em tudo
_sou assim em tudo
_não gostas e depois gostas
_não gosto e depois gosto

Quando saía o último cliente era a nossa vez. Calados olhando as pedras da calçada. Enquanto descíamos em direcção ao Camões. E depois ao Chiado. Táxi. Para Queluz por favor. Só te via pelo canto do olho. Porque deitávamos a cabeça para trás e fingíamo-nos mergulhados em pensamentos inúteis. Daqueles que nos inundam a mente ao fim de uma noite de música e copos. Às vezes dizias qualquer coisa. Embalado na tua voz de veludo gasto. Soava-me como vinda de um barril velho de madeira. Profunda. Olorosa. Respondia o que me viesse à cabeça. Só para te ouvir. E depois apertávamos a mão e eu ia para a minha casa e tu para a tua.

Um vez não fomos apanhar o táxi ao Chiado. Lembras-te. Eu não me lembro bem. Quantos anos passaram. Dezasseis. Dezassete. Não sei. Lembro-me de que passámos a Basílica da Estrela. Ou talvez esteja a fazer confusão. Porque não me parece que fôssemos capazes de andar tanto ao fim da noite. É que nós não conversávamos. E andar tanto em silêncio. Não. Nem eu. Não sei onde foi. Mas havia um muro ao longo do caminho. Talvez fosse do Jardim da Estrela. Ou não. Não interessa. E depois paraste e olhaste para mim com a tua cara sem riso. Anda cá. E eu fui. Senta-te. E eu sentei-me. E tu sentaste-te ao meu lado. E ficaste a olhar para mim durante um momento. E depois disseste. Tu não és como os outros. E passaste uma mão na minha cara e chegaste-te a mim. E beijaste-me os lábios. Só os lábios. Assim. Levemente. Eu fechei os olhos. Abraçámo-nos sem dizer uma palavra. Sentados no passeio encostados ao muro. Apertados. Porque a madrugada estava fria. E de vez em quando tirávamos a cabeça do ombro do outro. E trocávamos um beijo. Nos lábios. Assim.

The curiousness of your potential kiss

[Lotto - Jovem com livro]

Unfinished Sympathy

I know that I've imagined love before
And how it could be with you
Really hurt me baby, really cut me baby
How can you have a day without a night
You're the book that I have opened
And now I've got to know much more

The curiousness of your potential kiss
Has got my mind and body aching
Really hurt me baby, really cut me baby
How can you have a day without a night
You're the book that I have opened
And now I've got to know much more

Like a soul without a mind
In a body without a heart
I'm missing every part

(Cantado por Massive Attack)

Aquilo que não se pode contar . 17 . As trevas

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central)]

El final de la historia sólo es referible en metáforas, ya que pasa en el reino de los cielos, donde no hay tiempo.
Jorge Luis Borges, Los teólogos

Os outros meninos diziam mãe mãe deixa a luz acesa. Eu dizia mãe mãe baixa os estores e fecha a porta. Não podia ficar sequer um buraquinho por onde pudesse entrar. Se eu visse um grão que fosse de luz. Eu nunca tive medo do escuro. Do que eu tinha medo era da luz. Do que ela me podia tirar. Porque eu achava que aqueles raios de luz cortando o ar poeirento eram línguas de espíritos malvados que me entravam pelos olhos adentro. E me roubavam sugavam a alma. Lentamente. Escorrendo devagar. Devagarinho. Eu via-a. Uma mancha leitosa flutuando dentro dos raios de luz. A minha alma. Deixando um vazio doloroso na minha cabeça pequenina. As dores de cabeça. Eu sei. Eram os espaços vazios deixados pela minha alma sugada. E se um dia me ficasse apenas espaço vazio. Então todo eu seria uma dor de cabeça. Por isso se eu visse um grão que fosse de luz gritava mãe mãe mãe. E ela já sabia. Abria a porta do quarto com um sorriso conformado e baixava completamente os estores. Depois corria os cortinados e dizia pronto já não há luz nenhuma dorme bem até amanhã se deus quiser. A minha mãe acredita em deuses.

Por isso não tive medo das trevas que enchiam o sótão. Nem do silêncio total. Porque não se ouvia nada. Como se me tivessem arrancado os ouvidos. Nem o zum zum do sangue a zumbir. Mergulhado num nada peganhento. Aquiles. Porque é que me lembraria de Aquiles. Porque a mãe me tinha contado a lenda. O menino mergulhado pela mãe no rio dos mortos. Invulnerável. Mas havia aquela parte por onde a mãe o tinha segurado. O calcanhar seco. E eu naquele negro de morte. Os meus pés deitados fora da moldura. Se eu os puxasse para dentro. Então todo eu seria invulnerável. Embora eu já o fosse. Porque eu estava morto. E não há coisa mais invulnerável do que um morto.

Então puxei os pés para dentro. E depois mudou tudo. As trevas não se foram. Pelo menos completamente. Mas no ar corria agora uma luz leve. E o zumbido rido. Lá estava ele outra vez. Embriagando-me os ouvidos. E eu conseguia agora perceber o que estava à minha volta. Assim como se abrisse os olhos debaixo de água. Tudo turvo. Mas via. E ouvia. E hoje eu sei. Nunca deveria ter puxado os pés para dentro.

10.8.07

Aquilo que não se pode contar . 16 . Êxodo

[Bosch - Cristo carregando a cruz]

Subiu primeiro Saturo, que por nossa causa e por sua iniciativa já se entregara, uma vez que ele próprio nos tinha instruído, e portanto não estava presente quando fomos presos. E chegou ao cimo da escada, e voltou-se e disse-me: - Perpétua, estou à tua espera. Mas tem cuidado, não vá essa serpente morder-te.
(*)
Paixão de Perpétua e Felicidade, IV, 5 (séc. III)


Já cá estou. Ou lá. Porque eu já não sei onde estou. Porque às vezes parece que fiquei lá. Ou cá. E não sei onde queria estar. Se cá. Porque para saber onde queria estar tenho de saber onde estou. Se lá.

Eu não sei quem sou. Se o morto deitado na cama. Se o morto sentado balançando as pernas do lado de lá da moldura. Ou de cá.

Vou contar como foi.

Um pontapé no escadote. Mas eu não. Não fui eu. Senti fazer força força força. Mas não era eu. E depois o escadote caiu em cima de mim. Em cima do eu morto deitado na cama. Não me doeu. Porque eu estava ali em cima pendurado na moldura. E o eu que pensava e sentia era eu. O eu que estava morto em cima da cama não sei. Se calhar pensava e sentia. Mas eu não sentia por ele. E portanto era como se não sentisse. Como se não fosse eu. Mesmo sendo eu.

Força força força impulso. Ah. Já está. Eu não sabia que tinha esta força. Ou não tinha. Porque eu não me lembro de ter dito aos braços força força força. E eu era tão pequenino. Mas sei que estava pendurado as pernas balançando para aqui para ali e depois dei balanço e já está. Como se me tivessem puxado. Ou como quando me sentava no baloiço e ia para a frente e para trás e para a frente e para trás e sabia que não era eu que. Era a mãe. Eu só dava balanço. Não fui eu. Foi alguém. Alguma coisa.

E aquilo que me tinha prendido agora já não estava lá. Agora estava. Agora não. Tenho medo. Porque enquanto conto penso escrevo estas coisas. Às vezes parece-me sentir outra vez aquele rio de sangue negro descendo-me as costas caindo viscoso gota a gota.

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(*) ascendit autem Saturus prior qui postea se propter nos ultro tradiderat quia ipse nos aedificauerat et tunc cum adducti sumus praesens non fuerat et peruenit in caput scalae et conuertit se et dixit mihi Perpetua sustineo te sed uide ne te mordeat draco ille

A Bao A Qu

[Bénouville - Dois homens subindo uma escada]


«Para contemplar el paisaje más maravilloso del mundo, hay que llegar al último piso de la Torre de Victoria, en Chitor. Hay ahí una terraza circular que permite dominar todo el horizonte. Una escalera de caracol lleva a la terraza, pero sólo se atreven a subir los no creyentes de la fábula, que dice así:


En la escalera de la Torre de la Victoria, habita desde el principio del tiempo el A Bao A Qu, sensible a los valores de las almas humanas. Vive en estado letárgico, en el primer escalón, y sólo goza de vida consciente cuando alguien sube la escalera. La vibración de la persona que se acerca le infunde vida, y una luz interior se insinúa en él. Al mismo tiempo, su cuerpo y su piel casi traslúcida empiezan a moverse. Cuando alguien asciende la escalera, El A Bao A Qu se coloca en los talones del visitante y sube prendiéndose del borde de los escalones curvos y gastados por los pies de generaciones de peregrinos. En cada escalón se intensifica su color, su forma se perfecciona y la luz que irradia es cada vez más brillante. Testimonio de su sensibilidad es el hecho de que sólo logra su forma perfecta en el último escalón, cuando el que sube es un ser evolucionado espiritualmente. De no ser así el A Bao A Qu queda como paralizado antes de llegar, su cuerpo incompleto, su color indefinido y la luz vacilante. El A Bao A Qu sufre cuando no puede formarse totalmente y su queja es un rumor apenas perceptible, semejante al roce de una seda. Pero cuando el hombre o la mujer que lo reviven están llenos de pureza, el A Bao A Qu puede llegar al último escalón, ya completamente formado e irradiando una viva luz azul. Su vuelta a la vida es muy breve, pues al bajar el peregrino, el A Bao A Qu rueda y cae hasta el escalón inicial, donde ya apagado y semejante a una lámina de contornos vagos, espera al próximo visitante. Sólo es posible verlo bien cuando llega a la mitad de la escalera, donde la prolongaciones de su cuerpo, que a manera de bracitos lo ayudan a subir, se definen con claridad. Hay quien dice que mira con todo el cuerpo y que el tacto recuerda a la piel del durazno. En el curso de los siglos el A Bao A Qu ha llegado una sola vez a la perfección.


El capitán Burton registra la leyenda del A Bao A Qu en una de las notas de su versión de las Mil y Una Noches


Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero,
El Libro de los seres imaginarios.
Ed. Alianza Editorial

6.8.07

Aquilo que não se pode contar . 15 . Pregado

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel central)]

Still round the corner there may wait

A new road or a secret gate;
And though I oft have passed them by,
A day will come at last when I
Shall take the hidden paths that run
West of the Moon, East of the Sun.
J. R. R. Tolkien, The Lord of the Rings. The Return of the King

O mais difícil foi passar o corpo pela moldura. É o que isto é. Um corpo. Morto e frio. Preso. No entanto havia um espaço tão grande entre o peito e o lado oposto da moldura. E eu não passava. Como se uma força estranha me impedisse de. Só a cabeça. E os braços. Apoiados no chão do sotão. Fazendo força força força. E nada. Corpo preso terror crescente. E o cric cric das tábuas estalando debaixo dos braços. Mais nada. Nem zumbido rido. Silêncio quente. E eu um corpo sem cabeça. Porque a tinha mergulhada naquelas trevas pegajosas e era como se não a tivesse. Uma cabeça que não vê. Achei-me cego. Meio cego. Porque eu olhava para baixo e via-me morto em cima da cama. Mas em cima. Assim que deitava os olhos na escuridão cegava. Como se tivesse mergulhado a cabeça em nada. Como se aquilo não quisesse que.

E então achei que era o medo que não me deixava passar o corpo pela moldura. O meu. E devagar devagarinho tirei a cabeça de dentro do sótão e voltei a ver. A despensa poeirenta. E a luz laranja serpenteante. Ou vermelha. As lombadas rasgadas. Eu ali em baixo deitado na cama. E aqui em cima. Quase todo no meu confortável mundo pequenino. Não fossem as mãos lá dentro do nada. E não as sentia. Como se não as tivesse.

Pendurado na moldura sem medo de cair. Porque se caísse caía em cima de mim e não morria mais. É que eu já estava morto. O eu que jazia na cama de olhos baços abertos boca torta mão crispada no peito. E o eu pendurado na moldura medonha pernas dançando no ar poeirento. E um rio de sangue negro escorrendo nas costas pingava sobre o morto deitado na cama. De onde vinha. Depois viria a saber. Agora não quero. Porque quando me lembro (*) falta-me a coragem para continuar a lembrar.

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(*) "...me acosa una picazón en la mano derecha, aguda en el dedo mayor, y una suerte de entumecimiento, como si un agente sobrenatural me estorbara, para no dejarme escribir." Adolfo Bioy Casares. Escreveu esta frase enquanto se lembrava do que me iria acontecer.

The tides

[Dürer - Auto-retrato com 28 anos]

«How much time could you spend staring out at the ocean, even if it was the ocean you'd loved since you were a boy? How long could he watch the tides flood in and flow out without his remembering, as anyone might in a sea-gazing, that life had been giving to him, as to all, randomly, fortuitously, and but once, and for no known or knowable reason?»

Philip Roth, Everyman

5.8.07

Só um bocadinho

[Hopper - Rooms by the sea]

He ran barefoot and wet and salty, remembering the mightiness of that immense sea boiling in his own two ears and licking is forearm to taste his skin fresh from the ocean and baked by the sun.
Philip Roth, Everyman

Se os dias corressem mais depressa. Mas só um bocadinho. Porque eu não quero que passem a correr. Só um bocadinho mais depressa. Mas não demasiado. Assim. Aos bocadinhos. Em vez de um dia durar um dia inteiro durava um bocadinho menos. E assim não custava tanto. Porque enquanto o Sol me beija o corpo salgado o meu pensamento não está aqui. Mas se passassem a correr eu não teria tempo de saber que. Tu sabes. Depois quando chegares queria mostrar-te que tenho treinado. Todos os dias. Em frente ao espelho. Como me pediste.

El Burak

[Iluminura persa de Sultan Muhammad, século XVI]

«El primer versículo del capítulo diecisiete del Alcorán consta de estas palabras: "Alabado sea El que hizo viajar, durante la noche, a su siervo desde el templo sagrado hasta el templo que está más lejos, cuyo recinto hemos bendecido, para hacerle ver nuestros signos". Los comentadores declaran que el alabado es Dios, que el siervo es Mahoma, que el templo sagrado es el de La Meca, que el templo distante es el de Jerusalén y que, desde Jerusalén, el Profeta fue transportado al séptimo cielo. En las versiones más antiguas de la leyenda, Mahoma es guiado por un hombre o un ángel; en las de fecha posterior, se recurre a una cabalgadura celeste, mayor que un asno y menor que una mula. Esta cabalgadura es Burak, cuyo nombre quiere decir "resplandeciente". Según Burton, los musulmanes de la India suelen representarlo con cara de hombre, orejas de asno, cuerpo de caballo y alas y cola de pavo real.

Una de las tradiciones islámicas refiere que Burak, al dejar la tierra, volcó una jarra llena de agua. El Profeta fue arrebatado hasta el séptimo cielo y conversó en cada uno con los patriarcas y ángeles que lo habitaban y atravesó la Unidad y sintió un frío que le heló el corazón cuando la mano del Señor le dio una palmada en el hombro. El tiempo de los hombres no es conmensurable con el de Dios; a su regreso, el Profeta levantó la jarra de la que aún no se había derramado una sola gota. Miguel Asín Palacios habla de un místico murciano del siglo XIII, que en una alegoría que se titula Libro del nocturno viaje hacia la Majestad del más Generoso ha simbolizado en Burak el amor divino. En otro texto se refiere al "Burak de la pureza de la intención ".»
Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero,
El Libro de los seres imaginarios.
Ed. Alianza Editorial

El doble

[Jacob Jordaens - Estudos de cabeça de Abraham Grapheus]

«Sugerido o estimulado por los espejos, las aguas, y los hermanos gemelos, el concepto del Doble es común a muchas naciones. Es verosímil suponer que sentencias como "Un amigo es un otro yo" de Pitágoras o el "Conócete a ti mismo" platónico se inspiraron en él. En Alemania lo llamaron el Doppelgaenger; en Escocia el Fetch, porque viene a buscar (fetch) a los hombres para llevarlos a la muerte. Encontrarse consigo mismo es, por consiguiente, ominoso; la trágica balada Ticonderoga de Robert Louis Stevenson refiere una leyenda sobre este tema. Recordemos también el extraño cuadro How they met themselves de Rossetti; dos amantes se encuentran consigo mismos, en el crepúsculo de un bosque. Cabría citar ejemplos análogos de Hawthorne, de Dostoievski y de Alfred de Musset.

Para los judíos, en cambio, la aparición del Doble no era presagio de una próxima muerte. Era la certidumbre de haber logrado el estado profético. Así lo explica Gershom Scholem. Una tradición recogida por el Talmud narra el caso de un hombre en busca de Dios, que se encontró consigo mismo.

En el relato William Wilson de Poe, el Doble es la conciencia del héroe. Este lo mata y muere. En la poesía de Yeats, el Doble es nuestro anverso, nuestro contrario, el que nos complementa, el que no somos ni seremos. Plutarco escribe que los griegos dieron el nombre de "otro yo" al representante de un rey.»

Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero,
El Libro de los seres imaginarios.
Ed. Alianza Editorial